Depois de o governador do Zaire ter despoletado a questão do contrabando de combustíveis para a vizinha RDC, e de um alto dirigente do governo ter anunciado que figuras de topo do regime estavam implicados no tráfico, os órgãos de comunicação social desataram a denunciar “descobertas” dos organismos policiais, a par de loas ao Presidente da República pelo seu empenho na luta contra a corrupção. Porque tamanho alarido em relação ao contrabando dos combustíveis, uma prática que tem barbas sem que aparentemente alguém se preocupasse com o assunto, como se de assunto novo se tratasse, e se tenha ficado a saber mais do tráfico durante este curto período do que em décadas da mesma prática?
A pequena, mas significativa, remodelação governamental que se seguiu, abrangendo os ministérios do Interior e da Justiça permitiu que as suspeitas de tráfico recaíssem no anterior ministro do Interior. Todavia, esta questão não pode ser dissociada do reforço das medidas securitárias e de restrição dos direitos fundamentais e garantias previstos na Constituição a que se vem assistindo, como a aprovação recente de legislação polémica indica. Não pode ser dissociada, igualmente, de possíveis medidas preventivas, justificadas pela policrise que afecta o País e suas instituições oficiais e a consequente e crescente insatisfação popular. E não pode deixar de ser dissociada, ainda, dos passos que estão a ser dados no sentido do reforço dos poderes de João Lourenço, seja como Presidente da República, seja como líder do MPLA.
É nesta perspectiva que também deve ser analisado o próximo Congresso Extraordinário do MPLA. Não me parece que se venha a assistir alguma disrupção em termos de contestação das teses de João Lourenço. O partido não tem forças morais para tal, não está capaz de reconhecer a grave crise que atravessa, nem de perceber que não tem soluções para os problemas do País. Por conseguinte, os congressistas vão limitar-se a referendar as propostas do líder.
Será que os delegados ao Congresso perguntarão ao Presidente da República porque será que ele e a comunicação social que ele domesticou – ao arrepio das medidas tomadas em 2017 e logo abandonadas – não se preocupam com a corrupção existente na ocupação de terrenos e de apartamentos e outras trapaças nas centralidades; na exploração criminosa das madeiras e dos recursos marítimos; na candonga de medicamentos e outros bens hospitalares; nos livros escolares que deveriam ser gratuitos e aparecem à venda nos mercados, na mixa das matrículas e dos exames escolares, na atribuição de bolsas de estudo que, segundo o semanário Expansão, custam 400 mil kwanzas se forem internas e dois milhões se forem para o exterior?
Com o tráfico de moeda estrangeira, que se arrasta igualmente há tanto tempo, como com o dos combustíveis, a céu aberto no Mártires? Com a exploração danosa de diamantes e mais recentemente de ouro e quartzo? Com a renovação de passaportes que também têm o seu preço de mercado? E com a droga, o pior de todos os tráficos, e com o álcool, pela acção corrosiva sobre o futuro da juventude? Será que questionarão como é possível isso continuar a acontecer, sete anos após ter sido decretado combate à corrupção, fazendo com que o País continue dolorosamente, a pontos de se desvalorizarem os sucessos que, na verdade, mostram que há uma Angola que teimosamente tem apostado no caminho certo?
Depois do adiamento de Julho para Setembro foi iniciado o Censo Geral da População e Habitação 2024 que, de acordo com a propaganda oficial, vai permitir ao Executivo definir, agora sim, novas políticas para Angola. Perante a desastrosa gestão do Censo – na minha residência quase apenas se limitaram a perguntar se eu tinha computador, e a mesma indigência inquisitiva aconteceu em casa de todos os meus próximos – ocorre-me fazer uma pergunta idêntica à que o General Ingo, antigo comandante da 1ª Região Político-Militar do MPLA, fez, em 1982, ao Presidente José Eduardo dos Santos numa reunião de militantes do seu partido para discutir formas de combater a indisciplina e a desorganização, e por arrasto a corrupção nos seus primeiros passos, apontando o dedo acusador para toda a sala: “Com esta gente, camarada Presidente?”.
E as minhas perguntas para as anunciadas medidas para novas promessas na perspectiva de um balanço “globalmente positivo” dos 50 anos de independência são: Com estas instituições, Senhor Titular do Poder Executivo? Com um governo-Estado partidarizado centralizado e autoritário? Com os resultados deste Censo? Com estes níveis de corrupção, mais abrangentes do que os de 2017?
Estes são, a par de outros feitos na conversa anterior (Novo Jornal de 18/10/24), alguns comentários em jeito de balanço que as comemorações do Onze me suscitam. Jamais ponho em causa a independência, apenas critico os resultados de uma governação sem o mínimo, repito, o mínimo, sentido de justiça social e sem compromisso patriótico. A independência relativamente a um regime injusto e cruel como o colonialismo foi a maior conquista dos angolanos, e mesmo os filhos das elites que hoje tudo questionam deveriam saber que sem a independência não teriam as oportunidades que têm tido. O mal presente não pode pôr em causa o bem do passado que perdura, mas este pode ser posto em causa pelos males do presente.
Afinal de contas, o pior resultado dos quase 50 anos de independência é o sentimento que muitos jovens professam, de que “no tempo colonial era melhor”. Uma vergonha! Os actuais governantes, que alimentam a ilusão de que se vão manter eternamente no poder, deveriam pensar nas preocupações e frustrações dos jovens, que vêm fazendo alertas e lutas pelo menos desde 2011. Continuam a enganar-se a si próprios repetindo, com voz de quem nem está aí e com olhar baço, que o mais importante é resolver os problemas do povo. Resolver os problemas do povo é, para eles construir o “inacebível” Aeroporto Internacional onde os passageiros de Cabinda – indiferentes ao luxo – são tratados à moda antiga; os palácios hospitalares – Mário Pinto de Andrade não merecia tal insulto – que se inauguram ao ritmo de fontenários; ou a ostentadora “nova” praça do Kinaxixi. Prepararam um Orçamento Geral do Estado para 2025 que, como os anteriores, será cumprido, talvez, a 50-60%, priorizando despesas que só por absurdo poderão ser consideradas prioritárias – não me sai da cabeça a descabida nova divisão administrativa, por exemplo – em desfavor do que se passa no combate à fome e à pobreza e na educação e na saúde. Como o que se vai gastar nos inaceitavelmente faustosos festejos do 50º aniversário da independência. Outra vergonha!
Esperemos que os preocupantes acontecimentos de Moçambique – ridiculamente escondidos, como sempre, da população que não tem acesso a outras fontes de informação, como se isso fosse possível nos dias de hoje – sirvam de lição aos dirigentes angolanos, sempre a pensar, como dizia na conversa de Agosto “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.
Fernando Pacheco, Novo Jornal, 22-11-24