O Chega não é uma tragédia. A tragédia é continuarem a tratá-lo como um pária, recusar perceber por que motivo mais de um milhão de portugueses lhe entregaram o voto.
Se há descontentamento com o sistema, fingir que ele não existe é uma forma de o alimentar.
A ascensão do Chega é uma oportunidade. Dizer o contrário é ignorar parte do país, as suas desigualdades, inseguranças e frustrações, sejam elas sociais, económicas ou apenas simbólicas. Fingir que tudo se resume ao “ódio”, à “ignorância” ou ao “populismo” é não querer escutar o eleitorado. Tragédia é insistir no cordão sanitário, que além de não conter o Chega, o consolidou. A diabolização reforça o papel de vítima que André Ventura cultiva com eficácia mediática e retórica de confronto. Usa habilmente a imprensa para expressar a indignação, e as redes sociais, particularmente o Tiktok, para a provocação.
O verdadeiro risco democrático não está no voto, está na recusa em compreendê-lo. A esquerda e a direita falharam em oferecer respostas claras a problemas reais — segurança, habitação, representação, imigração, confiança no Estado.
A pressão que o Chega hoje traz só pode ter uma leitura e uma exigência: fazer melhores executivos, deixar o país respirar fora do servilismo ao(s) partido(s), promover um interesse nacional abrangente, uma verdadeira cultura do mérito, escolher melhor quem nos representa, sair do espartilho burocrático e oligárquico que transformou a política numa carreira fechada, acessível sobretudo a quem cresce dentro das juventudes partidárias, dos gabinetes e das estruturas internas, e não a quem traz mérito, experiência ou ideias vindas da vida real. A emergência do Chega não é o colapso da democracia — é um sintoma da sua degradação.
De que serve repetir que o Chega “não pode ser normalizado”, se se continuar a proteger nomeações opacas, favores cruzados, redes de clientelismo?
Quando vê promessas quebradas, viveiros de boys e alternância sem mudança, não se vota para manter o sistema. Vota-se para o sacudir.
O Chega deve ser enfrentado politicamente, com propostas concretas, reformas corajosas, transparência, respeito pela inteligência dos eleitores. Se os partidos tradicionais não acordarem, acabarão a falar para si próprios, num país que os vai deixando de ouvir.
Fonte: Obervador